A Arte e o Evangelho

Gordon H. Clark

Gordon H. Clark
7 min readJun 11, 2020
A Theological Debate (Um Debate Teológico), 1888, Eduard Frankfort.

Nos Estados Unidos, tanto dentro como fora das igrejas, o Cristianismo tem muitos inimigos. Há os ateus cientistas e não tão cientistas que têm uma tremenda influência na educação pública. Há os abortistas assassinos, e criminosos de todos os tipos. Mas nenhum desses é o assunto desse artigo. Dentro das igrejas, a neo-ortodoxia, mais neo do que ortodoxa, reduz a Bíblia ao nível das fábulas de Esopo. Dentro da igreja há também outro grupo, alguns dos quais tem sido influenciados por Dooyeweerd e Rookmacher, alguns cujo pano de fundo é muito diverso para traçar, que desejam substituir o Evangelho pela arte. Talvez eles não sejam tecnicamente existencialistas, mas desprezam o intelecto e a verdade tanto quanto eles. As visões exatas dessas pessoas variam consideravelmente. Alguns veem mais nas implicações do que outros. Visto que essa diversidade torna difícil falar desse grupo como um todo, o presente artigo escolherá um membro em particular. A escolha é defensível, pois o cavalheiro, Leland Ryken, editou e escreveu um prefácio para uma antologia intitulada The Christian Imagination [A Imaginação Cristã] (Baker Book House, 1981). Considere agora essa citação extraída do prefácio:

A imaginação é o que nos capacita produzir e desfrutar das artes […]. A imaginação é um modo pela qual conhecemos a verdade. Pois a verdade, incluindo verdade religiosa, não é província somente da razão ou do intelecto. Por exemplo, uma pessoa pode experimentar a verdade sobre Deus e a salvação enquanto ouvindo o Messias de Handel. Mas como? Não primariamente através da razão, mas através dos sentidos (ouvir), emoções, e a combinação da mente, sentidos e emoções, o que eu chamo de imaginação.

Um pastor amigo meu […]. soube primeiramente que Jesus levantou da sepultura […] não durante o sermão, mas com o som das trombetas que concluíram o serviço [uma manhã de Páscoa] […]. Certamente, não com o intelecto, mas com os sentidos […]. A verdade, repito, não nos vem somente através da razão e do intelecto.

Considere a forma como a verdade nos vem na Bíblia. Se você perguntar a um adulto de classe de Escola Dominical que assuntos são abordados nos Salmos do Antigo Testamento, a lista se parecia com algo como isso: Deus, providência, culpa […]. Tal lista se inclina decididamente para o abstrato […]. Mas considere uma lista igualmente válida de assuntos […] cães, mel, grama, trovão, […]. Ela toca nossas emoções de uma forma muito mais vívida do que a primeira lista o faz. Na Bíblia a verdade não se dirige somente ao intelecto racional […]. O Messias de Handel é tão importante para nós quanto um sermão de Natal.

Porque as ideias expressas nesses parágrafos atraem a aderência de muitos que professam o Cristianismo, elas deveriam ser analisadas com cuidado. Algo bom pode ser dito: O autor tenta definir seu termo imaginação: isto é o que nos capacita desfrutar das artes. Mais tarde ele define isso de uma maneira mais explícita como a combinação da mente, sentidos e emoções. Que nenhum filósofo importante jamais usou o termo nesse sentido é irrelevante, pois todo autor tem o direito de definir seus termos como lhe apraz. Ele deve, contudo, aderir à sua própria definição, e a definição deve se ajustar ao desenvolvimento do assunto. Todavia, embora a definição declarada inclua a mente, o teor geral da passagem é hostil à mente. Além do mais, se imaginação é o complexo de todos esses fatores, incluindo a mente, o que o autor pode querer dizer ao afirmar que a imaginação é um modo pela qual conhecemos a verdade? Qual outro modo pode existir? A definição como dada inclui a consciência inteira da pessoa. Ela falha em distinguir imaginação de qualquer outra ação consciente. Sem usar a mente, sensações ou emoções de uma pessoa, quais verdades poderiam possivelmente ser aprendidas, e qual seria o processo de aprendizagem? A definição é tão abrangente que ela é absolutamente inútil, não distinguindo entre quaisquer dois métodos de aprendizado. Por causa dessa vacuidade, porque o autor obviamente deseja encontrar pelo menos dois caminhos para a verdade — um sem o intelecto — e por causa da última sentença na citação, parece que o autor deseja aprender algumas coisas através das emoções somente.

Uma pessoa deve perguntar se o desfrutar das artes depende ou não mais da mente do que das emoções. Críticos da pintura examinam a obra, avaliam a relação entre as áreas iluminadas e escuras (e.g., o desenho de Rembrandt do mendigo, sua filha, seu bebê e o dono da casa), e analisam a composição. A composição requer um pensamento cuidadoso, tanto por parte do artista como do crítico. Tais análises são intelectuais, não emocionais; e eu posso dificilmente imaginar que a pintura de Rembrandt levante muita emoção em alguém. Se o biógrafo de Leonardo da Vinci tivesse os fatos corretos de sua vida, pareceria que esse príncipe dos pintores era completamente não emocional; ou, se não completamente, sua emoção era uma de ira contínua. Então também, o livro de Milton Nahm sobre The Aesthetic Response [A Resposta Estética] distingue isso de emoção.

Contudo, estética não é a dificuldade principal com a passagem citada, nem é de grande importância para o Cristianismo. Uma dificuldade muito mais séria é a visão do autor sobre a verdade. Talvez ele não tenha nenhuma visão sobre a verdade, pelo menos nenhuma visão clara, mas ele certamente parece falar sobre dois tipos de verdade. Ele diz: “A verdade religiosa não é província somente da razão ou do intelecto”. Presumivelmente as verdades da física e zoologia são verdades da razão. Até mesmo isso é duvidoso, pois ele diz que a verdade — presumivelmente toda verdade, e, portanto, verdades religiosas também, mas também as leis da física — não é apenas intelectual. Com certeza muitos físicos não concordariam, e seria interessante ver como Ryken responderia à negação deles. Nosso problema aqui é descobrir o que ele quer dizer por verdade. Declarações, proposições, predicados anexos aos assuntos são verdadeiros (ou falsos). Mas como poderia uma cena noturna ou uma das esculturas de Rodin serem verdade? A escultura poderia lembrar seu modelo, e a proposição “a escultura lembra seu modelo” seria uma verdade; mas como poderia uma estátua de bronze ou de mármore ser uma verdade? Somente proposições podem ser verdades. Se eu meramente pronuncio uma palavra — gato, faculdade, colagem — ela não é nem verdadeira nem falsa: ela não diz nada. Mas se eu digo “o gato é preto” ou “a colagem é abominável”, eu falo a verdade (ou falsidade, conforme for o caso). Mas gato, por si só e sem contexto, não é nem verdadeiro nem falso. Observe que os Salmos, com os quais o autor tentar usar como um apoio, não dizem simplesmente cães, mel, grama e trovão: eles dizem que a grama seca, o mel é doce, e assim por diante, todas as quais são proposições. E se as palavras grama e trovão tocam a emoção de uma pessoa “muito mais vividamente” do que as palavras Deus e culpa, há algo radicalmente errado com as emoções dessa pessoa. Melhor não ter nenhuma emoção. Emoções são difíceis de controlar; elas não são apenas agonizantes para a pessoa que as possui, mas são também desconcertantes para os seus amigos.

Se a estética peculiar do autor é relativamente sem importância, e se sua visão não definida de verdade é uma falha mais séria, as implicações de tal visão defeituosa da verdade são desastrosas para a pregação do Evangelho.

É indubitavelmente verdade que “uma pessoa pode experimentar a verdade sobre Deus e a salvação enquanto ouvindo o Messias de Handel”. A razão é que O Messias usa as palavras da Escritura. Certamente, uma pessoa pode ter a experiência de tédio, ou uma ideia brilhante sobre investigação policial, ou uma decisão quanto a qual restaurante ele levará sua namorada mais tarde, enquanto ouvindo O Messias. Mas se alguém tem pensamentos sobre Deus e a salvação enquanto e por causa do oratório, eles vêm por razão das palavras da Escritura. A música adiciona pouco ou nada. De fato, a razão pela qual muitas pessoas não têm pensamentos sobre Deus enquanto ouvindo algo, é que a música as distrai.

O uso da palavra enquanto é um artifício de propaganda: Literalmente a sentença é verdadeira, mas o escritor quer dizer algo mais. Afortunadamente, após induzir uma resposta favorável da parte do leitor através da palavra enquanto, ele realmente diz o que ele quer dizer, duas vezes. Primeiro, um pastor creu primeiramente que Jesus ressuscitou dentre os mortos, não durante um sermão que lhe disse isso, mas com (certamente, com é ambíguo também) o som da banda de encerramento. De qualquer forma, o pastor não creu na ressurreição com sua mente ou intelecto. Ele sentiu isso. Alguém poderia concordar que ele sentiu o barulho das trombetas; mas como alguém pode sentir hoje a ressurreição de Cristo? Isso é totalmente sem sentido, e a linha final da citação mostra um ponto de vista totalmente anticristão.

Ele diz: “O Messias de Handel é tão importante para nós quanto um sermão de Natal”. Naturalmente, se o sermão de Natal numa igreja liberal se centra no Papai Noel, e não na encarnação da Segunda Pessoa da Trindade, a música de Handel pode ser tão importante quanto ele, sendo a importância similar aproximadamente zero. Mas certamente o escritor quer dizer que a música é tão importante quanto as palavras. Se isso fosse assim, não haveria nenhuma necessidade de pregar o Evangelho e exigir que as pessoas cressem nas boas novas.

Mas a arte não é um substituto para a informação do Evangelho. No Clowes Hall, na Universidade de Butler, em Indianápolis, há uma tapeçaria gigantesca que descreve a pesca maravilhosa dos peixes. Dizem que é uma grande obra de arte. Ora, numa certa ocasião, eu acompanhei um grupo de professores japoneses pelo local, e um deles me perguntou: “Qual é a história?”. Nenhuma quantidade de apreciação artística poderia lhe dar a informação que a Bíblia fornece. Que Cristo era Deus e que ele operou milagres durante sua encarnação é entendido somente através do entendimento intelectual de palavras. Nem um sopro de trombetas ajudaria.

Se as visões do escritor estivessem corretas, a obra dos missionários seria enormemente mais fácil. Eles não teriam que aprender um idioma difícil. Eles simplesmente colocariam uma gravação de Handel e as conversões se seguiriam. Por que Paulo não pensou nisso? Não preguem o Evangelho, não deem informação, apenas toquem alguma música! Pobre Paulo; ele disse: A fé vem pelo ouvir a palavra de Deus. Sem tapeçaria, sem escultura, sem fanfarra. Mas é Paulo quem define o que é o Cristianismo. Qualquer outra coisa é algo mais.

— Gordon H. Clark. Art and the Gospel. The Trinity Review, março/abril de 1982. Tradução: Luan Tavares (11/06/2020).

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Written by Gordon H. Clark

Gordon Haddon Clark (1902–1985) foi um teólogo, filósofo e apologista pressuposicional. “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 17:17)

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