Agostinianismo
Gordon H. Clark

À exceção de Parmênides, de quem ninguém, estou certo, quer ouvir falar, a primeira fonte da posição antiempírica é Platão; mas visto que Aristóteles não figurou com muito destaque, seria melhor começar com Agostinho. Seu De Magistro [Sobre o Mestre], um pequeno panfleto que mostra que os professores de faculdade nunca ensinam nada aos seus alunos — e disso estou bem convencido, por diferentes razões — , visa a mostrar que Cristo é o único professor. Por antecipação ele refuta Bertrand Russell, Rudolf Carnap e os positivistas lógicos na sua dependência da definição ostensiva. Seus argumentos contra o empirismo dos estoicos, juntamente com sua defesa da verdade, e outras partes dispersas dos seus escritos volumosos, são muito valiosos. Ele pode não ter expurgado seu pensamento de todos os elementos empíricos, mas certamente está mais próximo de Plotino do que de Crísipo. E foi melhorando à medida que escrevia. Para ele, a verdade era primordial.
Mais focado num propósito único, ao contrário das excursões de Agostinho em interesses amplos (mas em alguns lugares lamentavelmente inaceitável, apesar dos seus insights brilhantes por toda parte), o filósofo francês Nicholas Malebranche (1638–1715) desenvolveu um agostinianismo não empírico. Devemos estimá-lo por se opor aos jesuítas empíricos e políticos, mas o objetivo aqui, ao invés de dar um relato bem equilibrado de sua filosofia, é ilustrar o tipo de linguagem que o racionalismo cristão pode usar.
Aqui, então, seguem alguns parágrafos textuais de Entretiens sur la Métaphysique [Diálogos sobre a metafísica]:
Nunca tome… seus próprios sentimentos [um termo mais amplo que as sensações, mas que as inclui] como se fossem nossas [erro de impressão: nos em vez de vos?] ideias, as modificações [também vago] que tocam sua alma como se fossem as ideias que iluminam todos os espíritos…. você nunca contempla ideias sem descobrir alguma verdade; mas não importa que atenção dê às suas próprias modificações, elas nunca irão iluminá-lo… o Logos divino [le Verbe divin], como razão universal, inclui em sua [sa, feminino, é claro] substância as ideias primordiais de todos os seres, criados ou possíveis… todas as inteligências que estão unidas com a razão soberana encontram nela algumas dessas ideias… mas talvez você [o entrevistado de Malebranche] não tenha refletido o bastante sobre a diferença entre as ideias inteligíveis que a razão universal possui e nossos próprios sentimentos ou modificações das nossas almas… há, de fato, uma diferença entre a luz das nossas ideias e a obscuridade dos nossos sentimentos, entre o conhecimento e a sensação… quem não tenha suficientemente refletido sobre essa diferença, sempre acreditando ter um conhecimento claro do que do que vividamente sente, só pode vagar na escuridão de suas próprias modificações… O homem não é sua própria luz. Sua substância, longe de iluminá-lo, lhe é em si mesma ininteligível. O homem não sabe nada, exceto à luz da razão. Por razão, refiro-me sempre àquela razão universal que ilumina todas as mentes pelas ideias inteligíveis que de revela em sua substância luminosa… O espírito humano… pode de fato ver a luz, mas não pode produzi-la… elas podem descobrir as verdades eternas, imutáveis e necessárias, no Logos divino, na sabedoria eterna, imutável e necessária; mas podem encontrar apenas sentimentos amiúde bastante fortes, mas sempre obscuros e confusos, apenas modalidades cheias de escuridão… é somente o Logos divino que nos ilumina, pelas ideias inteligíveis que ele possui, pois não há duas ou varias sabedorias, duas ou várias razões universais.¹
Poucas páginas adiante há um parágrafo que pode ser transposto e inserido aqui para enfatizar o princípio agostiniano de que o nosso único Mestre é o Logos. Isso não se relaciona muito com o que seguiu na página anterior, mas sua importância fundamental torna necessária uma ênfase. Ariste, a quem Théodore esteve falando, não conseguiu entender a linha do argumento, e assim Théodore continua:
Ah, mon cher Ariste, sua resposta é mais uma prova do que acabamos de dizer… Digo-lhe o que vejo, mas você não vê. Isso prova que o homem não ensina o homem. Isso porque não sou seu mestre ou doutor [professor]. Isso porque sou apenas um monitor… Falo aos seus ouvidos. Aparentemente, só faço muito barulho. Mas nosso único mestre ainda não fala com suficiente clareza ao seu espírito ou melhor, a razão fala incessante e precisamente, mas por falta de atenção, você não compreende suficientemente o que ele nos diz. (Seção IX)
Agora, de volta ao meio da seção V, cuja linha de pensamento foi interrompida. Em vez de enfatizar ainda mais que Cristo é o nosso Mestre, Malebranche continua a fazer uma distinção entre sensação e conhecimento: “Deus… conhece a dor porque sabe no que essa modificação da alma consiste, no que a dor consiste… mas não a sente… Conhecer a dor, portanto, não é senti-la”. Isso exonera a imutabilidade e onisciência de Deus; mas porque estou mais diretamente interessado em me opor aos empiristas de hoje, acho que eu teria dito “Sentir a dor não é conhecê-la”.
Malebranche então continua:
Se alguém insiste em dizer que sentir a dor é conhecê-la… isso não é conhecê-la claramente… pela luz [de Deus] e pela evidência,² numa palavra, não é conhecer sua natureza e, portanto, para falar com exatidão, não é conhecê-la… Conhecer é ter uma ideia clara do objeto e descobrir suas várias relações pela luz e pela evidência.
…Não se dá o mesmo com meu próprio ser. Eu não faço ideia dele; não vejo seu arquétipo. Não consigo descobrir as modificações que afetam meu espírito. Eu não posso ao voltar-me para mim mesmo, reconhecer qualquer das minhas faculdades ou capacidades. A experiência interior que tenho de mim mesmo… não me deixa saber o que sou, a natureza do meu pensamento, da minha vontade, dos meus sentimentos porque… não tenho ideia da minha alma e deixando de ver seu arquétipo no Logos divino, não posso… descobrir nem o que ela é, nem as modificações das quais é capaz… as quais sinto vividamente sem conhecê-las.
Então, algumas páginas adiante, no parágrafo VIII, Malebranche nos exorta:
Silencie seus sentidos, suas imaginações e suas paixões, e você ouvirá a verdade pura da verdade interior, as claras e evidentes respostas do nosso Mestre comum quanto mais vivos os nossos sentimentos, mais eles espalham a escuridão. Quanto mais terríveis ou agradáveis as nossas fantasias, mais elas parecem ter corpos e realidade, mais são perigosas e aptas a nos seduzir. Dissipe e desafie-os. Evite tudo o que nos toca… prenda-se a tudo que o ilumina. É preciso seguir a razão, apesar das carícias, ameaças e insultos do corpo ao qual estamos unidos.
Na linguagem coloquial moderna você pode ver que esses não são, clara e evidentemente, os sentimentos do século XX secular.
Com menos floreio literário que a peroração de Malebranche, podemos resumir dizendo que a verdade diz respeito a Ideias, que as Ideias estão em Deus e que é só aí que a mente pode percebê-las. Só essas Ideias são os objetos do pensamento. E imagens sensoriais não podem de forma alguma ser transformadas em verdades. Na linguagem da antiguidade e da modernidade: conceitos abstratos jamais podem ser derivados de imagens sensoriais. Embora diferentes seres humanos possam ter e tenham diferentes sensações — pois a dor que você sente não é igual à minha — , há somente um conjunto ou mundo de Ideias. É o sistema da mente de Deus, e é só aí que podemos vê-las.
Um dos contemporâneos de Malebranche o provocou com um gracejo: “Aquele que vê todas as coisas em Deus não vê ali a sua própria loucura”. Grande verdade! Uma vez que Malebranche não era lunático e que, portanto, não há uma ideia assim em Deus, ele obviamente não poderia vê-la ali.
Surpreendentemente, de todas as pessoas, Jonathan Edwards é quem fornece algum suporte para as visões de Malebranche. Isso não quer dizer que o grande puritano concordava com Malebranche em grandes detalhes. Na verdade, ele fornece algum suporte bíblico para a doutrina da iluminação divina. O público cristão geral ficará, então, um pouco desiludido com seus próprios preconceitos antifilosóficos e pragmáticos, e os apologistas serão advertidos a não filtrar um Platão para engolir um Aristóteles.
Embora haja muita coisa em Malebranche que Edwards não iria gostar, em seu sermão A Divine and Supernatural Light Immediately Imparted to the Soul [Uma luz divina e sobrenatural imediatamente transmitida á alma), Seção Três,³ ele vai além do que se poderia esperar. Note a palavra “imediatamente” no título. O subtítulo da Seção III se refere a uma “luz espiritual que tem sido… imediatamente introduzida na mente por Deus”. Por conseguinte, a sensação não pode ser o meio. Isso é defendido por Edwards com uma série de versículos bíblicos: 1 João 3.6, negativamente, “todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu”. João 17.3, não obviamente pertinente, “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti”. Mais claramente pertinente é o seu comentário: “Esta luz e conhecimento são sempre ditos serem imediatamente dados por Deus”. De Mateus 11.25–27, ele escreve: “Este efeito é atribuído exclusivamente à operação e dádiva arbitrárias de Deus”. Destaquei imediatamente e exclusivamente em itálico porque os apologistas, confrontados com as Escrituras, fazem um último e derradeiro esforço e argumentam que Deus usa de outros meios necessários. Edwards continua com 2 Coríntios 4.6 “Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus…”. Mais uma vez, ele comenta que essa luz é “imediatamente de Deus… o efeito imediato do seu poder e da sua vontade”. Há também Salmos 119.18: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei”.
No parágrafo 3 do seu Secondly [Segundo] (página 18), ele repete: “É racional supor que esse conhecimento deve ser dado imediatamente por Deus e não ser obtido por meios naturais”. Ele então continua a enfatizar o imediatismo desse conhecimento, usando a palavra várias vezes nessa mesma página, e negativamente acrescentando que “[o conhecimento] não deve ser deixado no poder de causas secundárias…. imediatamente por ela mesma [a pessoa], como algo demasiado grande para estar no interesse de causas secundárias… imediatamente por ela mesma, de acordo com sua própria vontade soberana” (p. 18, 19).
Os empiristas, como sugerido acima, indubitavelmente observarão que a referência na Lei à contemplação de coisas maravilhosas mostra que as sensações de preto sobre branco são causas secundárias necessárias, de maneira que o nosso conhecimento da verdade divina é obtido por “meios naturais”. No momento, e para não repetir ou antecipar todos os argumentos contra o empirismo, basta dizer que Jonathan Edwards negava isso. Os empiristas podem encontrar algum consolo em Abraham Kuyper⁴ e Guido de Brès, que tiveram alguma ideia de iluminação divina, mas não foram tão longe quanto Malebranche e Edwards. Contudo, eu não afirmo que Edwards concordava totalmente com Malebranche nem que o último é infalível. Mas ambos mostram que o cristianismo não pode ser empírico.
━━━━━━━━━━━━━━━
¹ Oeuvres de Malebranche, Paris: G. Carpentier, sem data, Vol. 1, Troisième Entretien, 42ss.
² Por evidência, Malebranche não quer dizer “observação empírica”. Em inglês o significado é mais bem preservado em frases como “a verdade desse teorema geométrico é evidente”.
³ Edição Bains (1811), 12.
⁴ Abraham Kuyper, A obra do Espírito Santo (São Paulo: Cultura Cristã, 2011).
— Gordon H. Clark. Senhor Deus da Verdade. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, pp. 31–37.