Ceticismo
“Uma Visão Cristã dos Homens e do Mundo”, de Gordon H. Clark.
Na ordem de exposição, a primeira reação à questão “Como sabemos?” é a resposta negativa de que não sabemos. O conhecimento é impossível. Esta é uma conclusão a que vários pensadores chegaram por muitas razões diferentes.
A primeira delas é: algumas pessoas adotaram essa resposta pela exaustão. A natureza sutil e escorregadia dos paradoxos epistemológicos facilmente produz desespero. Na história da filosofia, isso aconteceu primeiro como reação aos desconcertantes argumentos de Zenão de Eleia. Caso a tartaruga receba uma vantagem inicial na partida, Aquiles jamais poderá alcançá-la porque toda vez que ele chega ao ponto onde a tartaruga estava, a tartaruga já não está lá — ela teve uma fração de segundo para andar um pouco mais. E, a cada momento do voo de uma flecha, suas duas extremidades são coincidentes com dois pontos no espaço; mas, coincidir com dois pontos é estar em repouso portanto, a cada momento do suposto voo, a flecha está em repouso. As dificuldades de resolver esses enigmas eram tão grandes que os últimos pré-socráticos desistiram e aceitaram a conclusão de que o conhecimento é impossível.
Segunda: algumas pessoas adotam o ceticismo porque há mais evidência positiva. A opinião comum atribui à sensação o crédito por fornecer informações sobre o mundo. Mas sonhos e ilusões, enquanto duram, são tão vívidos e tão reais para nós quanto imagens sensoriais. Se nos beliscarmos para nos certificarmos de que estamos acordados, somos lembrados de que podemos estar sonhando que estamos nos beliscando. Portanto, é impossível dizer quando estamos sonhando e quando estamos acordados. Além disso, dois objetos supostamente reais podem produzir uma experiência sensorial idêntica, como acontece quando vemos gêmeos. E, mais comumente, um objeto pode produzir várias imagens sensórias. Não se pode saber qual delas representa o objeto de forma adequada. Por sua vez, não podemos comparar os objetos com cada imagem, pois nosso único contato com o objeto se dá por meio de imagens. E, além disso, diz-se que os cães são daltônicos; conta se, também, que eles têm o olfato e audição mais apurados que os seres humanos. Assim, se os cães ouvem melhor, que evidência há para nos impedir de supor que eles enxergam melhor também? Talvez o mundo não tenha cor e os cães o enxerguem corretamente; nós, seres humanos, temos alucinações de cores. Essas alucinações podem ser tão impressionantes que seria necessário concluir que somos insanos. Há alguma prova de que não somos? E Descartes desfere um golpe arrasador: para tudo que sabemos, visto que nada sabemos até então, pode haver um demônio onipotente cujo maior deleite é constantemente nos enganar. Ele é tão poderoso que nos faz pensar que dois e dois são quatro quando, na verdade, dois e dois são cinco. E, sendo este o caso, o conhecimento é obviamente impossível.
A terceira razão é: há algumas opiniões que, embora sejam chamadas com propriedade de céticas, são tão desenvolvidas em detalhes que poderiam ser classificadas na próxima seção sobre o relativismo. Na Antiguidade. Protágoras é o exemplo ilustre. Ele começa observando que uma brisa fresca é estimulante para o homem com boa saúde, mas a mesma brisa é fria e desagradável para o homem com febre. Esse vento, portanto, é agradável e desagradável. Cada homem conta a verdade quando aplica o próprio predicado ao vento. Aparentemente, a verdade é de fácil obtenção, pois ninguém pode estar enganado, o homem é a medida de todas as coisas e todas as coisas são como aparentam. Então, Protágoras salienta que o vento é estimulante somente em relação a um homem, e o vento é desagradável somente para o outro homem. Se não houvesse homens, e se considerássemos o vento apenas em si mesmo, ele não seria estimulante nem desagradável; nem fresco, nem frio; nem forte, nem gentil; na verdade, o vento por si mesmo nada seria. Ele existe apenas em relação a alguém. Portanto, é impossível obter a verdade, pois nenhum predicado liga-se a qualquer coisa em si mesmo. Não há vento frio, não há vento, exceto de uma pessoa em conjunção com os impulsos externos produzem uma colisão ou um acontecimento que pode ser chamado acontecimento estimulante. Porém, ainda que fosse possível saber que os impulsos externos foram idênticos, sua colisão com outra pessoa produziria um vento diferente. E essa outra pessoa pode ser a “mesma” pessoa em outro momento. Por exemplo, Sócrates saudável é uma pessoa e, quando o vinho toca sua língua, há uma sensação de doçura. Mas Sócrates doente é outra pessoa e, quando o vinho toca essa língua diferente, uma sensação de amargor aparece. Todas as sensações estão em pé de igualdade. Nenhuma é mais verdadeira que a outra; nenhuma é mais falsa que a outra; elas são apenas diferentes. Por isso, todo o mundo pode dizer: minhas sensações são verdadeiras porque são minhas; e sou o único juiz de minhas sensações. Todos os juízos são verdadeiros; ninguém tem a possibilidade de pensar de modo falso, pois o homem é a medida de todas as coisas.
Nos tempos modernos, David Hume defendeu uma posição bastante semelhante. Ele começa destacando que, embora a homem seja um ser racional e extraía a alimentação e nutrição adequadas da ciência, os limites do entendimento humano são tão estreitos que se pode esperar uma pequena satisfação neste ponto particular. Sem dúvida, os céticos admitem a certeza das impressões presentes; e Hume valoriza muito a distinção entre impressões, vívidas e fulgurantes, e ideias, fracas e pálidas; todavia, Hume é tão vago quanto Protágoras no que diz respeito à origem delas. Além disso, diferentemente de Protágoras, Hume oculta a implicação de que a suposta memória é meramente outro estado presente de consciência. Neste, e em alguns outros aspectos, Hume parece às vezes estar um pouco desligado do ceticismo. Mas a dificuldade problemática é encontrar a evidência que nos assegure de toda existência real ou subsistência além do testemunho presente dos sentidos ou os registros da memória. Essa evidência teria de depender do que se considera a conexão necessária entre causa e efeito. Se alguém perguntar a um homem por que ele crê que seu amigo está na França, argumenta Hume, ele daria como razão algum fato presente, como uma carta recebida dele. Mas, se não houvesse conexão causal entre a carta e a localização do amigo, a inferência de que ele está na França seria inteiramente precária. Hume, então, analisa o conceito de causação. O conhecimento dessa relação não pode ser obtido por algum raciocínio a priori. Caso um objeto, por exemplo, um pó de composição química desconhecida, seja apresentado a um homem de habilidades e razão naturais sempre fortes; se o objeto for inteiramente novo para ele, ele não será capaz, mediante o exame mais preciso feito por sua qualidades sensíveis, de descobrir qualquer uma de suas causas ou efeitos. Isso pode ser aprendido pela experiência. Após muitas experiências nos tornamos habituados ao fato de que o uso desse pó, que no caso pode fermento ou arsênico, é seguido por certos acontecimentos chamado de efeitos. Mas, embora nos tornemos tão habituados, nós ainda fracassamos em observar qualquer razão para essa conjunção; não vimos qualquer conexão necessária entre esses pós e seus diversos efeitos. Por que um pode ser utilizado na comida e por que o outro é veneno continua tão misterioso quanto sempre. Percebemos que um acontecimento chamado efeito segue outro acontecimento chamado causa, mas não percebemos que um acontecimento causa um acontecimento posterior. A razão e experiência não justificam a ideia de causalidade ou conexão necessária. As fontes últimas das operações naturais estão totalmente bloqueadas à curiosidade e investigação humanas. A mais perfeita filosofia de tipo natural, diz Hume, impede um pouco mais nossa ignorância; enquanto a mais perfeita filosofia do tipo metafísico talvez sirva apenas para descobrir porções maiores do desconhecimento.
Hume não se gloria exatamente de sua ignorância, mas tanta abrir espaço para a probabilidade. Isso deve ser discutido depois. Entretanto, caso se aceite sua análise da causalidade como mera sequência no tempo, e se o conhecimento das realidades além do testemunho presente dos sentidos depende da lei de causa e efeito, segue-se que nada pode ser conhecido além de nossas impressões momentâneas e ideias passageiras. E, mais uma vez, o homem é a medida da própria condição.
Talvez nem o homem seja a medida de sua condição. O ceticismo de Hume e Protágoras não para com a ignorância humana sobre mundo objetivo; embora afirmem certeza para as impressões presentes, os dois filósofos aniquilam o ego que pode ter as impressões. Hume considera um fantasia infundada o conceito do ego permanente que tem ou percebe as impressões e que, sendo idêntico ao ego de ontem, pode se lembrar do passado. Só existem impressões. Assim como ele deixou confuso o conteúdo dessas impressões, ele também falha em encontrar algo que constitua uma impressão. Eu me arrisco a dizer que Hume descreve a pessoa como nada além de um feixe ou coletânea de diferentes percepções, sucedendo-se com uma rapidez inconcebível, em perpétuos fluxo e movimento. Esse feixe não é destruído de uma ver por todas durante a vida; partes dele desaparecem e outras aparecem; e, nesse sentido, o “mesmo” feixe continua a existir. Porém, embora o feixe seja o mesmo, a ausência de qualquer fio que amarre as partes parece permitir que chamemos de ego ou pessoa qualquer lista de impressões. O que é coloquialmente chamado de dor de dente de Joãozinho e o aborrecimento do dentista ao tratar de um garotinho poderia ser chamado de feixe. E, embora esse feixe não possa permanecer unido por tanto tempo quanto outras coletâneas, ele parece satisfazer todas as qualificações do ego humano transitório.
A ilustração que Platão usou para apontar uma falha semelhante em Protágoras foi o cavalo de Troia. Se inexiste o ego unitário capaz de comparar sensações diferentes e produzir juízos conceituais, o feixe de sensações ou sentidos só poderia ser amarrado por algum tipo de cavalo de madeira. Cada homem no cavalo representa um sentido ou uma impressão; embora cada homem da ilustração fosse um soldado grego real, o cavalo de madeira ou o feixe de impressões não poderia ser uma pessoa viva e pensante. Não seria possível dizer que ele conhece.
Obviamente, Hume tenta evitar os extremos mais repugnantes do ceticismo, e parece falhar. Na maior parte dos casos, ele usa expressões da linguagem coloquial e do senso comum; afirma sua insatisfação com algumas de suas conclusões e até repudia sua antiga obra intitulada Tratado da natureza humana; mas, ao omitir de sua obra posterior algumas de suas antigas conclusões, não ofereceu um substituto construtivo para ocupar o lugar delas. Assim, na medida em que Hume faz alguma contribuição distintiva para a história da filosofia, ele deve ser considerado um cético.²
Talvez os antigos levassem a filosofia mais a sério que os modernos. Cínicos epicureus e estoicos, quando chegavam as suas conclusões, viviam por elas. Pode-se debater se a relutância de Hume em conceder valor total ao ceticismo é uma atitude cética em relação a toda a discussão filosófica ou uma suspeita dogmática da falsidade do ceticismo. Na Antiguidade, Pirro não adotou posição tão ambígua. Para ele, e conhecimento era impossível e nada faria diferença. Um dia, ele se afastou rapidamente. quando uma carruagem de quatro cavalos cruzou a esquina a uma velocidade imprudente. Um de seus estudantes o censurou pela falta de consistência: ele não deveria ter saído do caminho, pois não faria diferença. Pirro tinha a resposta cética: “Por isso que afastei”, ele disse, “porque não faria diferença”.
Há resposta para o ceticismo? William James disse que não: o ceticismo moral e o ceticismo intelectual não podem ser refutados pela lógica. Entretanto, essa não tem sido a atitude de muitos dogmáticos — os filósofos que creem que a verdade é alcançável — e não seria uma má ideia examinar as tentativas de refutação lógica feitas por Platão e Aristóteles.
Platão mostrou que o ceticismo de Protágoras se expressava de duas maneiras. Algumas vezes, ele dizia que o homem é a medida e que todos estão certos. O vento é verdadeiramente estimulante, o vento é verdadeiramente desagradável. Mas se todos estão certos no que pensam, então Platão está certo quando acredita que Protágoras está errado. Ou, por outro lado, se o vento em si não é nada e todos estão errados, então Protágoras também está errado.
Aristóteles disse a mesma coisa, porém com palavras diferentes. A lógica, ele argumentou, baseia-se nas leis da contradição e do terceiro excluído: o objeto x não pode ser y e não y; e o objeto x deve ser ou y ou não y, Ora, certa palavra deve significar uma coisa, ou um número finito de coisas, ou um número infinito de coisas. Se a palavra tem um número finito de sentidos, então seria possível inventar um nome para cada sentido, de forma que todas as palavras teriam um único significado. Mas, se cada palavra ter um número infinito de sentidos, o raciocínio e a conversação se tornam impossíveis, porque não ter significado é ter nenhum significado. Mas, se uma palavra tem sentido, seu objeto não pode ser homem e não homem. Se o cético tenta evitar esse argumento, ele pode fazê-lo dizendo nada. Nesse caso, contudo, não há teoria cética aguardando refutação. Ou, ele pode acusar Aristóteles de petição de princípio usando a lei da contradição. Mas então, se ele disser isso, terá dito alguma coisa e admitido a força da lógica. Agostinho também argumenta contra o ceticismo. A Academia cética ainda era memória recente no tempo de Agostinho e, além disso, sua busca angustiada pela verdade e seu desapontamento inicial foram experiências comoventes demais para passar em silêncio. Outrora, ele havia sustentado, junto com outros, que não era possível saber com certeza de algo, e que a probabilidade é suficiente para a vida. Com sua conversão ao cristianismo, ele passou a defender que não se pode falhar em conhecer a verdade. Em primeiro lugar, probabilidade sem conhecimento não pode guiar a vida moral. Se pudesse, um homem cometeria o mais criminoso dos atos, porém, se ele o considerasse provavelmente bom, não poderia ser culpado. De qualquer forma, não poderia haver probabilidade a não ser que a verdade viesse primeiro. Os céticos se referem às proposições como falsas, duvidosas ou prováveis; mas esses termos não têm sentido a não ser que haja alguma verdade. A proposição falsa é o contraditório da proposição verdadeira. Se alguém disser que uma proposição é duvidosa, deve reconhecer a possibilidade de ser verdadeira. E o provável ou plausível é o que se assemelha à verdade. De tudo isso, segue que, a não ser que o homem conheça a verdade, ele não pode saber o que é provável. Por conseguinte, se a verdade não é conhecida, não há razão para agir de uma forma em vez de outra. A vida se tornou sem sentido. Ademais, as formas lógicas são certas. A disjunção — se estou acordado ou dormindo — é sem dúvida verdadeira; e, da mesma forma, a implicação — se não há mais que quatro elementos, não há cinco.
Os céticos, antigos e modernos, não parecem ter dado suficiente atenção à lógica. É mais provável, em resposta à disjunção e à implicação acima, que digam que elas não contém informação real ou que são triviais, ou meramente formais. O advérbio meramente é um termo de descrédito. Formais ou não, as leis da lógica são com certeza verdadeiras e, como Platão implicou e como Aristóteles explicitamente disse, o cético não pode propor o ceticismo sem usá-las. Isso torna contraditório o ceticismo, e indica que William James devia estar enganado quando disse que o ceticismo não pode ser refutado pela lógica.
Mas Agostinho vai mais além. Ele defende a existência de intuições intelectuais confiáveis. No início de Crítica da razão pura, e repetidamente na longa seção central depois da dedução de categorias, Kant confia, devido a muitas de suas conclusões, na negação da intuição intelectual. Agostinho afirma a intuição intelectual a partir da própria existência. Ele sempre constrange o oponente cético perguntando-lhe se ele sabe que existe. Ele deve existir para duvidar, até para duvidar da própria existência. Não é possível haver dúvida, ilusões ou ceticismo, a menos que alguém exista. A partir daqui, Agostinho segue construindo o que pode ser vagamente chamado platonismo cristão; por enquanto, contudo, a conclusão é que o ceticismo foi refutado. E, se uma filosofia com outro nome poder ser demonstrada como um ceticismo disfarçado, ela também deve ser rejeitada.
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² O eminente Norman Kemp Smith, em The Philosophy of David Hume, p. 79ss, 443ss, 497ss, passim (Macmillan, 1941), tentou defender Hume da acusação de ceticismo. Ele rejeitou a tradicional interpretação de Hume, feita por T. H. Green, Selby-Bigge, os Mills, Leslie Stephen, et al., segundo a qual a pensamento de Hume é um desenvolvimento lógico dos princípios de Locke e Berkeley. N. K. Smith apresentou outras influências em ação, em especial a de Francis Hatcheson, mas continuou insatisfeito com a tese principal. Na melhor das hipóteses, Smith mostra que Hume era inconsistente e não raro falhava em relacionar as diversas partes do próprio sistema. Para mim, o impulso principal dos escritos de Hume encontra-se mas aplicações céticas do empirismo. Cp. James Seth, English Philosophers (J. M. Dent & Sons, 1921), p. 150, 156, 168.
— Gordon H. Clark. Uma Visão Cristã dos Homens e do Mundo. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2013, pp. 270–277.