Hermenêutica Escrituralista e Informação Extrabíblica
Douglas J. Douma
Nota do editor: Este artigo apareceu pela primeira vez no site de Douglas Douma, A Place for Thoughts, em 20 de abril de 2020 — douglasdouma.com. Douma escreveu uma biografia sobre Gordon Clark intitulada The Presbyterian Philosopher: The Authorized Biography of Gordon H. Clark [O Filósofo Presbiteriano: A Biografia Autorizada de Gordon H. Clark], Wipf e Stock, 2016 e compilou e organizou as cartas de Clark para Clark and His Correspondents: Selected Letters of Gordon H. Clark [Clark e Seus Correspondentes: Cartas Selecionadas de Gordon H. Clark], Trinity Foundation, 2017.
Apesar de cobrir uma ampla e profunda faixa de teologia em seus numerosos livros e artigos, permanece uma lacuna nos escritos do Dr. Gordon H. Clark, pois ele nunca escreveu um artigo especificamente dirigida ao tópico da hermenêutica ou interpretação bíblica. Embora, de fato, nenhuma redação individual de Clark tenha sido dedicada a esse tópico — e ele quase nunca usou a palavra “hermenêutica” ou “hermenêutico” em seus escritos — alguns elementos de suas visões sobre o assunto podem ser discernidos em seus escritos. O que é encontrado lá é uma hermenêutica reformada que coloca radicalmente a Escritura sobre informações extrabíblicas, não apenas em grau, mas em espécie.
Livros sobre hermenêutica listam tipicamente vários “princípios da hermenêutica”, mas raramente mostram suas derivações. Os princípios da hermenêutica podem ser encontrados na própria Escritura? Eles podem ser baseados na lógica? Ou eles são determinados por outras considerações, até mesmo as extrabíblicas?
No pensamento de Gordon Clark, os princípios hermenêuticos (como o conhecimento em geral) devem ser encontrados na Escritura ou deduzidos da Escritura. Somente então ele seria consistente com sua epistemologia “Escrituralista”, baseada no axioma “A Bíblia é a Palavra de Deus”. Mas além disso, ele aceitou a lógica (ou raciocínio válido) como princípio corolário de seu axioma e, como tal, sem dúvida aceitaria como princípios hermenêuticos válidos baseados na lógica. Quanto aos princípios hermenêuticos baseados em qualquer outra coisa — qualquer coisa extrabíblica — estes devem ser rejeitados. É nessa rejeição en toto de princípios hermenêuticos extrabíblicos que a hermenêutica de Clark diverge radicalmente de todos os outros.
Parte 1: Princípios da Hermenêutica Escrituralista
I. A Analogia Fidei Aceita no Escrituralismo
O principal princípio hermenêutico da teologia reformada é o de comparar a Escritura com a Escritura. A Confissão de Fé de Westminster I.IX explica:
A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.
Chamado analogia fidei ou “analogia da fé”, esse princípio é apenas uma aplicação da lei da contradição. Esse princípio pressupõe que não há contradições entre as várias declarações proposicionais da Bíblia. Se houvesse contradições na Escritura, a comparação das passagens da Escritura confirmaria isso e mostraria que a Palavra de Deus nem sempre é verdadeira. Mas a Escritura ensina que Deus não mente (Números 23:19), e que ele não é o autor da confusão (1 Coríntios 14:33). A analogia fidei tem, então, apoio bíblico e lógico.
Clark comenta aprovadoramente esse princípio em pelo menos dois lugares:
Não devemos levar cada versículo isoladamente e nos restringir a pedacinhos desarticulados de informações dispersas. Devemos comparar a Escritura com a Escritura. O que não está claro ou completo em um versículo pode ser mais claro ou pode ser concluído em outro. Devemos inferir e deduzir. Se a Bíblia ensina que Davi era rei de Israel, e se também ensina que Salomão era filho de Davi, podemos legitimamente inferir que Salomão era filho de um rei de Israel.[1]
Mesmo sem entender o versículo, pode-se perceber que essas interpretações estão erradas porque contradizem uma série de outras passagens mais claras da Bíblia.[2]
A ênfase de Clark na necessidade de seguir a analogia fidei o levou a contestar a visão sub-reformada de Cornelius Van Til, que argumentava em favor de “paradoxo” na Escritura. Como esse debate foi discutido várias vezes em outros lugares, não há necessidade de se aprofundar aqui. Ele é mencionado apenas para evidenciar que Clark levava a sério esse princípio da hermenêutica.
Que outros princípios podem ser incluídos na hermenêutica escrituralista?
II. Validade Contínua Aceita no Escrituralismo
Um desses princípios pode ser resumido como “aceite a validade contínua do que é ensinado na Escritura, a menos que seja revertida posteriormente”. Em certo sentido, esse princípio é uma continuação da analogia fidei, mas com referência especial à revelação progressiva. O princípio é derivado logicamente como uma aplicação da cronologia à Escritura. Embora nem sempre seja claro qual escrito bíblica vem após outro, muita cronologia pode ser determinada na Escritura. Novamente, esse princípio tem apoio bíblico e (crono)lógico.
Que Clark aceitou esse princípio pelo menos em relação ao Novo Testamento e ao Antigo Testamento é claro:
Algumas pessoas agem como se, ou definitivamente afirmam, que não podemos aceitar nada do Antigo Testamento a menos que seja repetido no Novo. O princípio correto, no entanto, é que não devemos descartar nada do Antigo, a menos que seja instruído a fazê-lo no Novo — como por exemplo a lei cerimonial.[3]
O princípio correto da interpretação não é o princípio Batista de descartar tudo no Antigo Testamento não reafirmado no Novo; mas antes a aceitação de tudo no Antigo não revogado pelos ensinamentos do Novo Testamento.[4]
Outros princípios da hermenêutica provavelmente podem ser encontrados na Escritura e/ou lógica (e incentivo meus leitores a encontrar os outros!).
III. A Adequação da Linguagem Necessária no Escrituralismo
A interpretação da Escritura também exige que seja possível ao homem entender seu significado. Portanto, o próprio meio — a linguagem — deve ser adequado para a comunicação da verdade de Deus. Este é um pressuposto necessário, pois sem a adequação da linguagem nenhuma comunicação de Deus poderia ser conhecida pelo homem e a hermenêutica bíblica não poderia começar.
Clark escreve:
Certamente a linguagem, como dom de Deus a Adão, tem como objetivo, não apenas a comunicação entre os homens, mas a comunicação entre o homem e Deus. Deus falou palavras para Adão e Adão falou palavras para Deus. Como essa é a intenção divina, palavras ou linguagem são adequadas. Certamente, em algumas ocasiões, mesmo em ocasiões frequentes, o homem pecador não consegue encontrar as palavras certas para expressar seu pensamento; mas isso é um defeito do homem, não uma inadequação da linguagem.[5]
Este ponto certamente não é controverso para os cristãos reformados. De fato, nenhum dos pontos listados até agora deve ser controverso para os cristãos reformados. O que torna a hermenêutica escrituralista única — e talvez até controversa — é o papel, ou a falta dela, desempenhado por informações extrabíblicas.
Parte 2: Hermenêutica Escrituralista e Oposição à Informações Extrabíblicas
Como o Escrituralismo limita o conhecimento àquilo que é explícito na Escritura ou deduzido logicamente da Escritura, informações extrabíblicas não podem ser confiáveis e, portanto, não podem ser determinantes na interpretação bíblica.
Talvez a melhor explicação disso seja em uma das palestras em áudio de Clark, onde ele diz:
[John] Frame insiste que podemos derivar conhecimento de uma observação da natureza. E a citação é “informação extrabíblica para interpretar a Escritura”. Conforme precisamos, usamos “informações extrabíblicas para interpretar a Escritura”. Mas nem ele nem Van Til explicam como isso é possível. Essa é uma grande lacuna na teoria deles. Mas Frame insiste: “Assim, podemos usar esses dados destemidamente e agradecidamente”. Ou seja, podemos usar dados extrabíblicos destemidamente e agradecidamente. Isso significa que devemos manter a teoria da gravitação descartada? Isso significa que devemos nos apegar à ideia de Newton de que o movimento ocorre em linha reta? Isso significa que devemos aceitar Einstein, que diz que o movimento nunca prossegue em linha reta? E que não há gravitação? São estruturas independentes do espaço e tempo, como Newton disse, ou elas não são independentes, como diz Einstein? E quem sabe o que será da ciência daqui a um ano! […]. Continuando a citar Frame: “Mesmo quando usamos informações extraescriturísticas, conforme devemos (isso faz parte de suas palavras), para entender a Escritura, devemos nos apegar a essas informações”. Ah, pensei que ele tinha dito na página anterior, podemos usá-la “destemidamente e agradecidamente”. Agora ele diz que temos que usá-la “folgadamente”. E se a usarmos folgadamente, então, mesmo que com folga, devemos rejeitar o princípio de que a Escritura deve ser interpretada pela Escritura, que eu acho que é a posição Reformada. E, é claro, essa questão de “folgadamente” destrói todo o esquema de Frame.[6]
Da mesma forma, Clark escreveu sobre Robert Reymond:
Se meu estimado colega — e eu realmente o estimo muito — deseja fazer da Escritura a única base de conhecimento e, depois, acrescentar algo de uma fonte diferente, sua consistência me escapa.[7]
E não são apenas Frame e Reymond que diferem de Clark sobre esse assunto, mas provavelmente todos os teólogos reformados.
Considere Louis Berkhof, que escreveu:
Os principais recursos para a interpretação histórica da Escritura são encontrados na própria Bíblia. Ao contrário de todos os outros escritos, ele contém a verdade absoluta e, portanto, suas informações merecem ser preferidas às obtidas de outras fontes.[8]
Note que, para Berkhof, os princípios da hermenêutica são encontrados principalmente na Escritura, mas não apenas na Escritura! A informação na Bíblia é preferencial, mas informações extrabíblicas não são excluídas.
Enquanto teólogos como Berkhof desejam reter informações extrabíblicas como uma segunda forma menor de conhecimento atrás da Bíblia, Clark descarta completamente a informação extrabíblica. Para ele, a informação extrabíblica é não apenas um tipo diferente de conhecimento, ela não é conhecimento de forma alguma. E visto que a informação extrabíblica não é conhecimento, ela não pode ser usada para interpretar precisamente a Escritura. Se nos lembrarmos do primeiro princípio acima, a Escritura deve ser interpretada pela Escritura. O Escrituralismo não é o mais consistente com esse princípio?
Parte 3: Clark era consistente? — Recursos Extrabíblicos em Clark
E quanto às vezes em que o próprio Clark faz referência a informações extrabíblicas? Ele estava sendo inconsistente?
Aqui estão alguns desses momentos:
Como o ponto em questão é apenas o uso grego, pode-se apelar para livros fora da Bíblia. Agora, no Apócrifo Eclesiástico 34:25 (LXX 34:30) conecta o verbo batizar com purificação. É preciso lavar-se ou batizar-se depois de tocar em um corpo morto. Números 19:13, 20 mostra que a purificação do contato com cadáveres era realizada por aspersão. Portanto, o verbo batizar nos Apócrifos designa aspersão.[9]
Cerca de dois séculos antes do nascimento de Jesus, os rabinos em Alexandria — onde a grande população judaica havia esquecido amplamente o hebraico — traduziram o Antigo Testamento para o grego. Esta tradução, chamada Septuaginta, usa a palavra grega Kurios para o hebraico JHVH. O Novo Testamento, que frequentemente usa a tradução da Septuaginta, aplica esse título grego a Jesus: o Senhor Jesus. Assim, os autores dos livros do Novo Testamento identificam Jesus como Jeová.[10]
O verbo grego significa crer. Por isso, ele foi traduzido nos versículos anteriores citados. Aqui seguirá alguns exemplos de seu uso comum, tanto em fontes pagãs quanto na Bíblia. Os versículos bíblicos da Septuaginta não são escolhidos porque são bíblicos, mas, como as fontes pagãs, mostram como a palavra foi usada nos tempos pré-cristãos. Quando os autores do Novo Testamento começaram a escrever, eles usaram a linguagem comum.[11]
Mesmo que o final mais longo de Marcos seja espúrio, ele é, no entanto, grego, escrito por um escritor de língua grega, e, portanto, incide sobre o significado da palavra.[12]
Além disso, no comentário First John de Clark, ele parece aprovar a obra de Leon Morris de buscar certos termos na Septuaginta, uma tradução das Escrituras Hebraicas originais.[13]
Como então resolver esse dilema? Esses apelos extrabíblicos são meramente opinião, e não conhecimento, com relação a informações extrabíblicas? A verdade não pode ser construída sobre uma base de mera opinião. Se uma interpretação da Escritura depende de informações extrabíblicas, o entendimento da passagem bíblica é tão experimental quanto a própria informação extrabíblica.
Talvez Clark responda a todas essas perguntas neste único lugar:
Ramm escreve: “O Sola Scriptura não afirmou que, com referência à escrita da teologia, todo conhecimento que não seja o conhecimento [bíblico] é desnecessário”; presumivelmente ele quer dizer que um conhecimento da gramática grega é útil para escrever teologia. Assim é; mas como o Novo Testamento está escrito em grego, pode-se incluir a gramática grega na esfera do conhecimento bíblico. Se ele quer dizer conhecimento da arqueologia ou da sociologia da cultura hitita, respondemos que os protestantes aceitam a Escritura como perspícua e suficiente. “Toda Escritura é inspirada por Deus […] a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” [ARA]. Escrever teologia, teologia ortodoxa, é um boa obra. Portanto, o conhecimento extrabíblico é desnecessário, mesmo que tenha algum valor próprio.[14]
━━━━━━━━━━━━━━━
[1] CLARK, Gordon H. Predestination, [1987] 2006, p. 13.
[2] CLARK, Gordon H. “Desultory New Testament Curiosities”, PCA Archives, 1984, não publicado.
[3] CLARK. Predestination, p. 18.
[4] CLARK, Gordon H. Sanctification, 1992, p. 61, agora incluído em What Is the Christian Life?, 2012, p. 84.
[5] CLARK, Gordon H. Language and Theology, [1980] 1993, p. 130, também incluído em Modern Philosophy, 2008, p. 259.
[6] CLARK, Gordon H. Palestra em áudio intitulada “John Frame and Cornelius Van Til”, Gordon-Conwell Lectures on Apologetics, 1981.
[7] CLARK. Language and Theology, p. 151; Modern Philosophy, p. 274.
[8] BERKHOF. Principles of Biblical Interpretation, 1950, p. 128.
[9] CLARK, Gordon H. What Do Presbyterians Believe, [1965] 2001, p. 242.
[10] CLARK, Gordon H. The Atonement, [1987] 1996, p. 30.
[11] CLARK, Gordon H. Faith and Saving Faith, [1983] 1990, p. 95, agora incluído em What Is Saving Faith?. 2004, pp. 73–74.
[12] CLARK, Gordon H. The Pastoral Epistles, [1983] 1998, p. 113n.
[13] Veja CLARK, Gordon H. First John, 1980, pp. 44–45.
[14] CLARK, Gordon H. “The Concept of Biblical Authority”, 1979, p. 16, incluído em God’s Hammer: The Bible and Its Critics, [1982] 2011, p. 182
DOUMA, Douglas J. Scripturalist Hermeneutics and Extra-Biblical Information. The Tinity Review, junho de 2020. Tradução: Luan Tavares (01/06/2020).