O Pecado que Tenazmente Assedia os Teólogos
Por Daniel Gomide da Silva

Em 1992, a edição da The Trinity Review veiculou um artigo do filósofo cristão Gordon H. Clark intitulado The Theologian’s Besetting Sin¹ cuja tradução seria algo como “O pecado que assedia o teólogo”. Nesse artigo Clark explica que o pecado, assim como a retidão, tem origem mental. E mesmo pecados que se manifestam na conduta, são antes concebidos no coração. Nesse sentido, Clark acrescenta, “o pecado é resultado de erro intelectual”. O erudito, mesmo o erudito cristão, não está isento de erros. Por isso Clark seleciona exemplos de erros intelectuais, em diversas categorias, e o faz com três objetivos específicos: “O objetivo é alertar os jovens estudantes sobre como é fácil dar errado, quão necessário é dar certo, e quão difícil este último prova ser […]. O objetivo de coletar os seguintes erros não é apenas alertar os leitores cristãos a fazer pelo menos um mínimo de checagem, mas também e principalmente para alertar os futuros escritores cristãos e ajudá-los a reduzir suas inadequações em vários graus”. Sendo calvinista e estando ciente da depravação total, Clark não pretende criar expectativas inalcançáveis e por isso cita Malebranche com aprovação: “[…] Nesta vida não se deve esperar total felicidade, porque ninguém deve reivindicar a infalibilidade; mas deve-se trabalhar incessantemente para evitar o engano”. E acrescenta: “Como nenhum de nós é onisciente, ou mesmo inerrante, não é de surpreender que nossos volumes de teologia contenham tolices, equívocos e asneiras”.
O artigo de Clark está repleto de exemplos interessantes e o próprio autor escreve uma nota de alerta para seus leitores: “Por outro lado, já que eu também cometi erros, os leitores têm o direito de verificar se os exemplos aqui analisados são ou não invenção do escritor atual”. Essa nota de alerta vale para o escritor que vos dirige agora a palavra.
Não sei qual o alcance o artigo de Clark obteve. O fato é que 26 anos após a publicação do artigo² escritores cristãos continuam cometendo erros e alguns leitores cristãos continuam despreocupados em relação à checagem. Assim como não era o objetivo de Clark, não é meu objetivo expor ao ridículo. Mas selecionei um exemplo de um livro que li recentemente para renovar o alerta do Agostinho da América.
No livro Verdade Absoluta, Nancy Pearcey dedica uma curta seção para explicar a importância que Platão detém na filosofia. Após apresentar o esquema dualista forma/matéria ela assevera que “de acordo com a perspectiva bíblica, o problema com o dualismo platônico era que identificava a fonte do caos e do mal como parte da criação de Deus, a saber, a matéria”.³ Há dois problemas aqui. O primeiro é metodológico e o outro diz respeito a um erro histórico. O problema metodológico é que Nancy invoca a crença cristã para anular o dualismo platônico. No entanto, é insuficiente invocar uma crença contrária para rejeitar outro sistema. Suponha que um muçulmano invoque sua crença para anular o cristianismo. A mera invocação refutou a visão cristã? O erro histórico consiste em dizer que o dualismo platônico identificava a fonte do mal como parte da criação de Deus, isto é, a matéria. Na cosmologia platônica, apresentada no diálogo Timeu, o demiurgo não é o criador, mas aquele que dá forma à matéria pré-existente caótica. Em outras palavras, no dualismo platônico, a matéria não é parte da “criação” de Deus, pois não há uma doutrina da criação em Platão.
Mais adiante Nancy comete outros equívocos históricos. Ela escreve: “Porém, segundo os gregos, o dilema humano era metafísico — o problema é que somos seres físicos e materiais” (p. 86). No artigo de Clark supracitado ele reconhece que os filósofos gregos não eram cristãos e que os sistemas que propuseram eram incompatíveis com a fé cristã. Entretanto, Clark prossegue, “embora muitas vezes contradigam nossa teologia, isso não justifica nossa deturpação de seus pontos de vista. Devemos sempre declarar a posição de um adversário com a maior precisão possível. Isso não é só uma questão de honestidade, é também uma questão de estratégia”. Para os monistas corpóreos e para os pluralistas corpóreos ou para os estoicos materialistas, não havia problema em sermos seres físicos. E, para citar Clark novamente, “se quisermos discutir ‘a visão grega’, como Ladd e outros chamam, a primeira coisa a ser dita é que não existe tal coisa”.
Para mencionar outro equívoco histórico cometido por Nancy, vejamos como ela atribui a Agostinho uma teoria das formas que ele não defendeu: “O ponto mais importante é que ele [Agostinho] reteve uma noção adaptada da criação dupla, ensinando que Deus fez, em primeiro, as formas platônicas inteligíveis e, em seguida, o mundo material na imitação das formas” (p. 87). O ponto mais importante de Nancy não é tão importante assim, pois ela atribui a Agostinho uma crença que ele não sustentou. Note que ela diz que Agostinho reteve uma noção adaptada da criação dupla, mas, supondo que ele reteve tal noção, de onde ele a adaptou? Não nos é dito. Podemos estar certos de que não foi de Platão, pois não há uma noção de criação — quanto mais dupla! — em Platão. Contudo, nem mesmo Agostinho manteve tal noção! Para Agostinho as formas não eram uma criação paralela ao mundo físico. Antes, faziam parte da mente de Deus. E falar do mundo físico como criado a partir de um arquétipo não implica criação dupla. Fílon de Alexandria, apesar de ter uma linguagem confusa, parece ter mantido que houve uma criação do mundo das ideias e então do mundo ectípico. No entanto, Agostinho, conforme na Questão 46, seção 2, manteve que as ideias integram a mente divina:
Ideias podemos exprimir em latim como formas ou espécies, se quisermos verter literalmente. Se as chamarmos de razões, nos afastaremos da tradução exata, pois razões se denominam em grego λóγοι e não ideias. Mas quem quiser usar esse vocábulo não se desviará da coisa mesma. Com efeito, as ideias são certas formas ou razões principais das coisas, estáveis e imutáveis, que não são formadas e por isso são eternas e se mantêm sempre do mesmo modo, contidas na inteligência divina. E embora não nasçam nem morram, dizemos que segundo elas é formado tudo que pode nascer e morrer e tudo que nasce e morre.⁴
Na sequência, Pearcey alega que “Agostinho adotou os princípios da ética do asceticismo, baseando-se na suposição de que o mundo físico e as funções físicas eram por natureza inferiores, uma causa do pecado” (2006, p. 87). De fato, Agostinho defendeu uma forma de gradação dos seres. Ele também acreditava que havia bens superiores, bens intermediários e bens inferiores. Contudo, após sua conversão, Agostinho não defende que os bens inferiores sejam causa do pecado, como Pearcey alega. Para Agostinho, a origem do pecado só pode ser encontrada no mau uso que o homem faz do livre-arbítrio: “Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre-arbítrio”.⁵ Não iremos discutir aqui a plausibilidade da resposta de Agostinho ao problema do mal,⁶ mas é necessário destacar que o bispo de Hipona não acreditava que os bens inferiores fossem a causa do pecado.
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¹ CLARK, Gordon Haddon. The Theologian’s Besetting Sin. The Trinity Foundation. Disponível em: <http://www.trinityfoundation.org/journal.php?id=68>. Acesso em: 18 de maio de 2018.
² Não sei precisar aqui a data da escrita, mas a data indicada da publicação sugere que o artigo pode ter sido publicado postumamente, uma vez que Clark faleceu em 1985.
³ PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 87.
⁴ HIPONA, Agostinho de. As Ideias. USP. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/68259/70922>. Acesso em: 18 de maio de 2018.
⁵ AGOSTINHO, Santo. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995, p. 52.
⁶ Veja Gordon H. Clark em Deus e o Mal: O Problema Resolvido.
— Daniel Gomide da Silva. Fonte: Nota do IBETEC: https://www.facebook.com/notes/350882986333265