Senhor Deus da Verdade

Gordon H. Clark

Gordon H. Clark
10 min readJun 28, 2023

Agora, para concluir este tratado, deixemos para trás o paganismo, tanto o antigo como o moderno. Mas, sem abandonar a epistemologia, devemos nos tornar muito mais evidentemente bíblicos. Ainda assim, quase nada pode ser mais apropriado do que repetir e ampliar algumas das ideias anteriores sobre a importância do conhecimento. A epístola aos Hebreus traz uma crítica contundente aos anti-intelectuais daqueles dias: “Pois, com efeito, quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento sólido” (Hebreus 5.12). O grego é um pouco mais enfático: “É preciso que lhes ensinem os elementos do princípio dos dizeres de Deus”. Essas pessoas haviam esquecido os princípios mais elementares do ensino cristão. Elas eram “inexperientes na palavra”. Alguns desses assuntos elementares eram o arrependimento, a fé, a ordenação, a ressurreição e o juízo eterno (6.1–2). Hebreus condena essas pessoas como “tardias em ouvir, bebês, ainda demasiado infantis para comer alimento sólido”. Note que essa repreensão severa não é administrada aos que foram recém convertidos no dia anterior. Já havia passado tempo suficiente para que elas se tornassem mestres. Sua considerável recusa em aprender era digna de repreensão. Na verdade, elas eram tão ignorantes que o autor se absteve de explicar coisas que cristãos mais bem-educados ficariam felizes em aprender, pois se dirigiu a elas como “tardias em ouvir”.

Note também que essa repreensão é dirigida não a ministros ordenados, mas a membros comungantes. Sem dúvida, eles tinham de ganhar a vida; era necessário que trabalhassem para sustentar sua família. Ainda assim eles deveriam ter estudado regularmente, habitualmente, conscienciosamente. Você deve ganhar sua vida, mas somente Madalyn Murray O’Heretic diria que passar duas horas assistindo viciados em drogas de 250 libras fritarem numa grelha era melhor que 30 minutos de comunhão com Deus.

Essa avaliação do uso do tempo não deve ser pressionada apenas sobre o público geral; muitos ministros também precisam, infelizmente, receber alguma pressão. O cristianismo chegou à mais profunda pobreza e depressão desde o seu ápice glorioso de 1517 a 1647. Sem dúvida ainda há 7000 que não curvaram o joelho a Baal, mas eles têm pouca influência. Que Deus possa levantar um Elias.

Embora Hebreus tenha mencionado alguns poucos temas de estudo, como o arrependimento, a ordenação e o juízo eterno, uma pessoa que leve a repreensão a sério buscará ver algumas outras divisões do currículo. Para impor a necessidade dessa enumeração e o estudo de cada item em algum tipo de ordem, 2 Pedro 1.3 nos assegura que todas as coisas que conduzem à vida e à piedade chegam até nós da parte de Deus através da aquisição de conhecimento. Nem as virtudes morais, nem a teologia básica nos chegam pela sensação. Certo apologista contemporâneo usou Hebreus 5.14 para sustentar seu apelo à sensação. O versículo diz que se tornam maduros aqueles cristãos “que, pela prática, tem as suas faculdades [sentidos] exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal”. Mas, obviamente, o reconhecimento do mal não é uma função da retina ou do tímpano das orelhas. A figura de linguagem é tão comum hoje quanto o era na antiguidade. Depois que um estudante quebra a cabeça num problema de geometria, a solução (solução é algo dissolvido em água ou ácido) nasce (no horizonte oriental) para ele, que exclama: “Eu a vejo — passe-me os meus óculos escuros!”

Podemos supor que os animais têm sensações. Diz-se que os cachorros ouvem com mais clareza e veem com menos clareza que os seres humanos. As águias podem ver um objeto menor a uma distância maior que qualquer outra criatura viva. Mas, apesar de sobressaírem nas sensações, eles não sabem teologia. Se os empiristas tivessem razão em fazer da sensação a fonte do conhecimento, águias e cachorros teriam rivalizado com Lutero e Calvino. O conhecimento, a teologia e a santificação passam pela intelecção, como Pedro de forma tão definitiva disse. Por conseguinte, a pessoa que quer se livrar da condenação de Hebreus deve começar a pensar. A cegueira ou surdez tornariam grande parte da teologia impossível de ser apreendida caso ela fosse baseada na sensação; mas o melhor aluno entre os meus alunos deste semestre é cego. Seu sentido de visão é quase zero: ele só pode ver algumas sombras escuras, conseguindo evitar assim de bater em grandes objetos, mas seu intelecto é A+.

O cristão que entendeu esses versículos em Hebreus pode agora perguntar: como devo aprender? Bem, antes mesmo de começar — um começo, todavia, bíblico —, ele pode considerar a promessa de Deus em Tiago 1.5: “Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça a a Deus, que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-à concedida”. Salomão é um excelente exemplo disso. Provérbios 2.1–6 também é pertinente: “[se] fazeres atento à sabedoria o teu ouvido e [se] inclinares o coração ao entendimento… então, entenderás o temor do SENHOR e acharás o conhecimento de Deus. Porque o SENHOR dá a sabedoria, e da sua boca vem a inteligência e o entendimento”. Com esse encorajamento do próprio Deus, o bebê que deseje amadurecer pode agora perguntar por onde começar.

Com Hebreus ainda em mente, ele poderia perguntar: devo começar com o batismo, ou devo começar com a ressurreição? Claro, ele poderia começar lendo toda a Bíblia. Deveria fazê-lo algum dia, embora Levítico seja bastante enfadonho. Mas ler para ter uma impressão geral e estudar para um conhecimento exato são duas coisas diferentes. É interessante ver o mapa de todos os Estados Unidos, tudo habilmente impresso em duas páginas da Rand-McNally;¹ mas se você dirige de Boston para San Diego com algum interesse em coisas que ficam a meio caminho, alguns pequenos desvios exigem atenção.

Por conseguinte, se esse cristão é um convertido muito recente, criado em completa ignorância da Escritura, como foi o caso de alguns dos meus alunos, pode-se aconselhá-lo a começar o estudo pela expiação. Mas se ele possui algum conhecimento vago de doutrinas variadas, a resposta poderia ser: comece no assunto que mais lhe interessa. Isso não seria um procedimento sistemático e lógico, mas faria proveito do seu interesse atual. Mais tarde, se perseverar, ele reconhecerá que a doutrina da Trindade é logicamente anterior a qualquer outra doutrina, e se tornará mais sistemático. O perigo, o perigo quase inescapável, e, todavia, uma das lições mais importantes a serem aprendidas, é que o primeiro interesse de uma pessoa logo fica enredado com uma dependência inesperada de uma série de outras doutrinas. Com o tempo, o cristão maduro chegará à Trindade e, possivelmente, lerá Hilário de Poitiers e De Trinitate de Agostinho duas vezes.

Uma forma de aliviar esse procedimento fortuito, após um tempo razoável focando o primeiro interesse, é estudar o material bíblico que dá suporte, na ordem, a cada resposta do Breve Catecismo de Westminster. Em tempos recentes tem sido dito, e com verdade, que em 1700 os rapazes escoceses de quatorze anos sabiam mais teologia que os candidatos atuais para a ordenação. Um garoto de quatorze anos que tenha memorizado o Catecismo (e eu fui um deles) não entende realmente muito; mas ainda sabe mais que um candidato recente para o licenciamento que, tendo sido questionado em três perguntas pelo presbitério, sentou em total silêncio até o inquiridor retirar a pergunta — para alívio do presbitério, assim como do estudante estúpido. No entanto, o presbitério o licenciou.

Essa total ignorância, como um pré-requisito satisfatório para o licenciamento, é reconhecidamente excepcional. Mas ela condena mais o presbitério do que o pobre estudante. Para contrabalançar esse horrível exemplo, houve outro caso em que muitos dos presbíteros haviam sido professores do estudante. Após uma série de perguntas sobre vários pontos de teologia, todas as quais ele respondera muito bem, os professores exigiram que ele resumisse um livro, e depois outro e depois ainda outro livro do Antigo Testamento. É bastante trabalhoso resumir Isaías e Jeremias, mas o estudante recitou resumo após resumo, cada um em consideráveis detalhes. Então, percebendo o quase sadismo dos professores, ele os desafiou: vão em frente e peçam mais, disse ele, eu também posso fazê-los. O exame então acabou em risos e a votação foi realizada unanimidade, é claro. Agora, é praticamente possível a qualquer membro comungante comum, que sustente esposa e filhos, igualar o conhecimento desse aluno. Mas é preciso muito pouco tempo para superar a ignorância do outro aluno.

Certas advertências parecem necessárias para evitar a confusão generalizada. Há cristãos bem-intencionados que enfatizam uma distinção entre conhecimento teorético e vida cristã prática. Ou eles podem contrastar o conhecimento da cabeça e o conhecimento do coração, ou usar algumas outras frases. Essa linguagem é confusa. É bem verdade que os não cristãos podem compreender muito bem a doutrina cristã. O perseguidor Saulo compreendia melhor a doutrina cristã do que aqueles que ele perseguiu. Quanto melhor a entendia, mais intensamente perseguia. A diferença era que Saulo considerava as doutrinas falsas e blasfemas, enquanto os cristãos acreditavam que elas eram verdadeiras. Por isso, embora insistamos que o entendimento é indispensável, insistimos que a crença ou fé também o é.

Alguns cristãos confusos não se satisfazem nem mesmo com a fé, com base nos dizeres de Tiago de que os demônios creem e tremem. Eles não percebem que com isso Tiago estava apenas dizendo que os demônios creem no monoteísmo. Se também creem em algumas outras coisas, Tiago não nos diz quais são. A fé salvadora envolve uma crença, uma aceitação voluntária como verdadeira, em algumas outras proposições também.

Depois, há outros, não apenas Ernest Renan e os modernistas, mas aparentemente crentes devotos, que enfatizam tanto a moralidade ou o chamado cristianismo prático que a doutrina da Trindade e a representatividade federal de Adão são quase totalmente obscurecidas ou descartadas. Mas a própria Escritura diz que toda a Escritura é útil para a doutrina, e toda a Escritura inclui um conceito muito definido de Deus.

Parte dessa rejeição de porções da Bíblia resulta de uma confusão entre o que é necessário para o primeiro passo na salvação e o que é indispensável para a maturidade, conforme a exigência do livro de Hebreus. Claro, uma pessoa pode ser regenerada sem ter ouvido falar na representatividade federal, mas continuará infantil, a menos que cresça.

Jonathan Edwards, numa breve dissertação sobre o Christian Knowledge (Conhecimento cristão), começa a Seção III afirmando: “Não há nenhuma outra maneira pela qual qualquer meio de graça pode ser de algum benefício, exceto pelo conhecimento”. Ao fazer essa afirmação ele não exagera nem um só milímetro a declaração parecida feita pelo apóstolo Pedro. É por isso que o protestantismo exige um sermão antes da celebração da ceia do Senhor, enquanto os romanistas geralmente omitem o sermão e falam a missa em uma língua desconhecida. Edwards não cita Pedro aqui, mas alude a 1 Coríntios 14.1–6. Os versículos 9 e 11 seriam melhores: “Assim, vós, se, com a língua, não disserdes palavra compreensível, como se entenderá o que dizeis?… Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e ele, estrangeiro para mim”. Então Edwards continua: “Nenhum discurso pode ser um meio de graça, exceto pela transmissão de conhecimento… A Bíblia… não pode ser de nenhum proveito se não for o de transmitir conhecimento à mente”.

Além de citar o argumento real de Edwards, pode-se aprofundar e aproveitá-lo para fazer uma sugestão que sem dúvida ocorreu de várias formas a vários teólogos. A ideia básica é que Deus nos dá dons para um propósito e requer que os usemos conforme ele deseja. Ele nos deu estômago; portanto, devemos comer boa comida em vez de tomar veneno. Ele nos criou como mentes ou almas, deu-nos uma revelação e requer que pensemos nela. Também deu estômago aos animais; mas não lhes deu nenhum intelecto. Eles não podem nos dizer o que fizeram ontem nem o que planejam para amanhã. Mais exatamente, eles não podem planejar. Presumivelmente nenhum ser humano, exceto em casos de doença terminal, desce totalmente ao nível dos animais; mas várias formas de devassidão trazem suas vítimas para mais perto desse nível baixo, e moralmente, se não fisicamente, a um nível inferior Ora, uma das dádivas de Deus é a Escritura. Nela Deus aborda o intelecto. O propósito do intelecto é pensar e entender; o propósito da Bíblia é ser entendida.

Algumas pessoas são desagradavelmente presunçosas. Elas acham que sobressaem a todas as demais pessoas. E frequentemente sobressaem a muitas de várias maneiras específicas. Há outras que são extremamente tímidas e se desesperam até em fazer alguma coisa útil. Mas mesmo a pessoa que tem estômago fraco deve comer. Alguns alimentos podem talvez melhorar sua digestão. Um estudo da Bíblia irá, talvez lentamente, mas de forma inevitável, melhorar a mente. E também irá melhorar a mente presunçosa da forma que ela precisa ser aprimorada.

A maioria das pessoas não é excessivamente convencida nem tímida demais. A curva em forma de sino avoluma maioria de nós no meio. Meu avô era um desembaraçador de fios de lã mal remunerado e analfabeto. Também era um cristão devoto. Felizmente, seu filho mais velho enriqueceu e organizou a aposentadoria do pai aos 60 anos. Aposentado, ele dedicou suas horas ao estado da Bíblia. Embora sendo muito mais velho que os estudantes universitários, começou a estudar grego por conta própria. Depois que ele morreu, vi em seu Novo Testamento grego quão poucos versículos ele conseguira vencer num determinado dia, pois colocava as datas na margem. Embora tenham sido poucos versículos, suponho que ele sabia esses versículos de frente para trás e pelo avesso.

Aqueles que ainda esperam ser aposentados com auxílio dos filhos provavelmente não devem começar o grego, mas devem, todavia, procurar entender as Escrituras de frente para trás e pelo avesso. Você pode começar! Pode continuar! Pode aprender! E ao fazer a tentativa não só escapará da condenação do livro de Hebreus, como merecerá uma menção honrosa dos bereanos, que eram mais nobres porque examinavam as Escrituras para ver se essas coisas eram verdadeiras.

Santo Deus, que fez com que todas as Sagradas Escrituras fossem escritas para o nosso aprendizado, concede que possamos em tal sabedoria ouvir, ler, marcar, aprender e internamente digeri-las; que, pela paciência e consolo da Santa Palavra, possamos abraçar e sempre nos manter firmes na esperança abençoada da vida eterna que nos deste em nosso Salvador Jesus Cristo. Amém.

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¹ Empresa norte-americana fundada em 1856 especializada em mapas, navegação, viagens rodoviárias e planejamento de viagem. [N. do T.]

— Gordon H. Clark. Senhor Deus da Verdade. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, pp. 71–79.

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Written by Gordon H. Clark

Gordon Haddon Clark (1902–1985) foi um teólogo, filósofo e apologista pressuposicional. “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 17:17)

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