Sensações
Gordon H. Clark

Estudantes cristãos universitários amiúde respondem que Deus nos deu órgãos sensoriais e que, portanto, estes nos devem dar conhecimento. Ora, em primeiro lugar, ter uma sensação de vermelho ou azul não nos dá nenhuma informação do que consiste o vermelho, o azul ou a cor. Cientistas costumam dizer que elas são diferentes vibrações de um éter universal. Mas o éter evaporou antes de o século XX começar. Outros cientistas defendem uma teoria corpuscular da luz. Talvez esses universitários de segundo ano possam nos dizer no que consistem a luz e a cor. As sensações deles são aguçadas, não é mesmo?
Mas, em segundo lugar, se Deus nos deu órgãos sensoriais, isso não quer dizer que o propósito deles seja nos dar conhecimento. A falta de lógica do estudante vem da ideia infundada de que, se Deus nos deu sensibilidade, ela deve ter o propósito de descobrir a verdade. Bem, Deus também nos deu unha nos pés, mas não para o propósito de nos dar verdades. Jamais ocorre a esses estudantes que ao nos dar órgãos sensoriais Deus tinha um propósito diferente.
Malebranche, seguindo Agostinho, define o propósito da sensação como o de preservar o corpo do perigo. A dor pode nos alertar de que algo está errado. Mas a dor não nos informa o que está errado. Desde a antiguidade os médicos tém sempre suspeitado que a dor indica que algo está errado; mas mesmo hoje, com todos os maravilhosos avanços na ciência, eles admitirão que dificilmente sabem o que está errado.¹
Estudantes universitários não são os únicos que usam esse argumento falacioso. Professores de seminário também o usam, mas talvez não de forma tão grosseira. Um professor — estou relutante em usar seu nome, pois pessoalmente ele é um cavalheiro muito gentil — coloca isso da seguinte forma:
Há muitas passagens bíblicas que ensinam por inferência, se não diretamente, que a experiência sensorial desempenha um papel na aquisição de conhecimento (por ex., Mateus 12.3; 19.4; 21.16; 22.32; Marcos 12.10; Romanos 10.14). Parece-me que, antes de querer convencer muitos cristãos da sua posição, Clark deve explicar de maneira satisfatória (de uma forma diferente da quase universalmente aceita) literalmente centenas de passagens da Escritura que empregam as palavras “ver”, “ouvir”, “ler”, “escutar” etc. Até então não estou convencido de que Clark está de acordo com a Escritura quando nega aos sentidos um papel na aquisição de conhecimento, e espero que ele leve os céticos gregos menos a sério e encare com mais seriedade as implicações de muitos dos “axiomas subsidiários” da Escritura.
Duas páginas antes ele cita 1 João 1.1–3, uma passagem que é talvez mais enfática que as outras, pois diz: “O que… temos ouvido,… visto com os nossos próprios olhos,… nossas mãos apalparam… o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros”. Essas palavras não garantem que o cristianismo é uma forma de empirismo, um sistema baseado na experiência?
Esse parágrafo convida a uma resposta dupla: exegese da Escritura e um exame da validade do argumento. Visto que o cavalheiro naturalmente não cita suas “centenas de passagens da Escritura”, uma resposta só pode inquirir um pequeno número delas que ele possa ter tido em mente. Estas mostrarão que muitas vezes, mesmo na maioria dos casos, a Escritura não se refere à experiência sensorial quando usa as palavras ver, ouvir, ler ou escutar.
Todavia, reflexões gerais sobre linguagem metafórica não constituem o argumento principal. A seguir estão algumas frases do Antigo Testamento que formam o pano de fundo das expressões de João. Cada uma delas usa um órgão sensorial como metáfora, e algumas usam a expressão dupla de João de ver com os olhos.
Provérbios 3.7 Não sejas sábio aos teus próprios olhos.
Isaías 6.10 … fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração.
Isaías 11.3 [O SENHOR] não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos.
Isaías 44.18 (NVI) … seus olhos estão tapados, não conseguem ver.
Jeremias 5.21 … que tendes olhos e não vedes, tendes ouvidos e não ouvis.
Ezequiel 12.2 … que tem olhos para ver e não vê, tem ouvidos para ouvir e não ouve.
Ezequiel 40.4 … vê com os próprios olhos, ouve com os próprios ouvidos.
Então, no Novo Testamento:
Mateus 13.14–16 Ouvires com com os ouvidos e de nenhum modo entendereis; vereis com os olhos e de nenhum modo percebereis… fecharam os olhos; para não suceder que vejam com os olhos, ouçam com ouvidos, entendam com a coração… Bem-aventurados, porém, os vossos olhos, porque veem; e os vossos ouvidos, porque ouvem.
Alguém poderia querer agora fazer um último e derradeiro esforço na defesa da sensação e da teologia empírica. Teria João, perguntaria ele, usado as palavras de Isaías? Se ele diz “ver com os olhos”, não queria dizer o que disse? A resposta é clara: João não apenas poderia ter usado as metáforas de Isaías, como de fato o fez. Ele citou explicitamente Isaías:
João 12:40 Cegou-lhes o olhos e endureceu-lhes coração, para que não vejam com os olhos.
Será “visto” que em nenhum desses versículos ver se refere a percepção sensorial, mesmo quando a frase é enfatizada pela adição de “com os olhos”. Há outros versículos também. Êxodo 15.14, “Os povos o ouviram, eles estremeceram”, e os dois versículos seguintes falam — alguém ouve o som? — de um temor que meras impressões auditivas não poderiam produzir. Será que em Números 9.8 Deus produziu vibrações no ar que fizeram os tímpanos de Moisés vibrarem? Não negamos que Deus poderia ter festo isso. A questão é: ele o fez? O ouvir em Deuteronômio 1.43 não é uma sensação, mas obediência. Ainda mais definitivo é:
Deuteronômio 29.4 Porém o SENHOR não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir, até ao dia de hoje.
Claro, os israelitas haviam nascido com olhos e ouvidos e ainda os possuíam. Mas os olhos e ouvidos do versículo não são órgãos sensoriais. Deveria estar claro que, nesses versículos, nenhum processo físico-químico se tem em vista (compare 2 Reis 14.11 e Jó 27.9). Ademais, quando é dito que Deus ouve as nossas orações ou que seus olhos contemplam toda a Terra, não podemos escapar da observação que Deus, que é um Espírito incorpóreo puro, não tem órgãos sensoriais.
Há muitos outros versículos parecidos, e se este pequeno número pareceu entediante ou se alguém falhou em entender por que tanto espaço é desperdiçado com isso, a resposta é que muitas pessoas nos bancos das igrejas tomam 1 João 1.1 literalmente, como o fazem alguns comentaristas. John Cotton (1584–1652) define o objeto do versículo 1 como “Cristo Jesus em si mesmo [e] como homem, sendo ouvido, visto e apreendido pelos sentidos”. Alguns teólogos também tentam usar a passagem em defesa de um sistema empírico de apologética. Donde ha necessidade de referências mais que suficientes para refutar as alegações empíricas.
Com base nesses versículos, concluo que um professor não deveria permanecer no nível de um estudante e confundir metáforas com linguagem literal.
Isso não é um substituto para a exegese, e com a exegese isso é logicamente redundante, mas por uma questão de ênfase também se pode aludir ao inglês [português] comum. Aqui está um professor de Matemática de uma escola secundária tentando ensinar Geometria a alguns adolescentes. Milagrosamente, um deles quer aprender e está prestando atenção. Mas o assunto é difícil. Tendo o professor se esforçado na paciência por algum tempo, o aluno exclama: “Ah, consigo ver isso!”, mas entendimento não é uma função da retina.
A segunda réplica ao parágrafo do meu oponente é filosófica e lógica, mas ainda está dentro dos limites da mentalidade mediana. O cavalheiro afirma que a sensação desempenha um papel na aquisição de conhecimento. Como se pode chegar a essa conclusão? Claramente, descobrindo qual é esse papel. A menos que se saiba qual é esse papel, não se pode saber que há de fato algum papel. Por exemplo, no caso da grande dívida do governo dos Estados Unidos, alguns economistas sustentam que os déficits não desempenham nenhum papel na produção de desemprego, enquanto outros economistas afirmam o contrário. Para sustentar sua posição, estes últimos devem mostrar qual é o papel. Se não podem fazê-lo, tampouco podem justificar sua posição. Quando o Primeiro Ministro Menachem Begin renunciou à sua posição em Israel, alguns comentaristas disseram que um evento perturbador no campo de batalha havia causado isso. Mais tarde se chegou ao consenso de que ele renunciara unicamente por questões de saúde. Portanto, não se pode logicamente defender que a sensação desempenha um papel na aquisição de conhecimento sem mostrar qual é precisamente esse papel.
Todos os apologistas com quem debati se recusam a encarar essa questão. Sua posição é pior que a dos diplomatas. Saúde precária é uma razão reconhecível e suficiente para a resignação. Medo de ser derrotado no parlamento também é ama possibilidade. Assim, o público político não age irracionalmente ao considerar essas alternativas conhecidas, Mas os apologistas empíricos não têm de fato um candidato plausível. Quando lhes peço para mostrar como imagens podem ser transformadas em conceitos abstratos, nenhum deles sequer tenta explicar. Eles até mesmo se recusam a definir sensação. Da mesma forma, percepção. Eles realmente não têm nenhuma epistemologia, e suas palavras, para omitir uma parte inconveniente de uma citação popular, são cheias de sons, não significando nada.
Há uma falha subsidiária no parágrafo do professor, mas sendo um detalhe na refutação mais geral, ela pode ser mais compreensível aos leitores rápidos. O professor insiste em dizer que a sensação deve desempenhar um papel na aquisição de conhecimento. Certamente desempenha! Café da manhã também desempenha um papel. Com certas pessoas ocorre que se elas perdem seu café matinal, tornam-se tão irritadas e irritáveis que não podem prestar atenção aos seus estudos. Do que se conclui que Nescafé é a salvação do mundo acadêmico.
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¹ Veja o meu exemplo da febre do leite nas vacas, em The Philosophy of Science and Belief in God (Jefferson: The Trinity Foundation, 1956) p. 112–113 [ed. port.: A filosofia da ciência e a crença em Deus (Brasília: Monergismo, 2016)].
— Gordon H. Clark. Senhor Deus da Verdade. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, pp. 39–45.